Friday, March 28, 2008

Não precisa de título.

"Uma palavra é como uma nota que procura outra para o acorde perfeito."
Eugénio de Andrade, Rosto Precário

Sentei-me a um canto e pensei nas coisas simples da vida. Tentei definir tudo, mas nada fazia sentido e por isso precisei de escrever. Escrever libertou-me de todas aquelas angústias e dúvidas e à medida que escrevia, sentia que o lápis e a folha de papel eram uma extensão do meu corpo. Éramos um só.
Foi quando comecei a escrever que fui discorrendo sobre o que fazia. Na verdade, nunca tinha pensado sobre isso, mas também não conseguia explicar o efeito que a escrita tinha em mim, principalmente o efeito das palavras. Era mágico.
As palavras eram o meu conforto, era como se nelas me afogasse, nas minhas lágrimas da felicidade vivida ou da felicidade perdida. Continuei sem pensar no que escrevia e percebi como as palavras escorriam pela mão, pelos meus dedos, pelo meu lápis e como molhavam, chegando mesmo a inundar, a minha folha de papel. Continuei a ensopá-la até que parei. Eu sentia-me sufocado, mas as palavras libertavam-se e saíam de dentro de mim, como a água de uma fonte, e constituíam agora memórias, pensamentos e até mesmo tempos esquecidos.
Depois, as palavras saíam-me pelos lábios, como sussurros, ficando suspensas e desamparadas no silêncio gélido do meu quarto. Voltei a escrever. Entendi então que cada ser, cada coisa tem uma palavra, que é única e singela. Até a própria palavra "palavra" é uma palavra. Complicado? Nem tanto! Sorri. As minhas palavras tinham vida. Sim. Umas gritavam, choravam, sofriam e outras cantavam, dançavam, saltavam e corriam pela folha. Era simplesmente a minha catarse, à qual eu assistia.
É na minha folha que eu sou livre, que eu sou eu, que eu não finjo, que eu não represento, é nela que eu sou fiel. Fiel às palavras que estão dentro do meu corpo, que são da minha intimidade, a minha pessoalidade. Mas é também na folha que eu estou desamparado e inseguro, é nela que eu caio e sinto vertigens até ser resgatado pelas palavras que me puxam e sacodem e me devolvem a força, a energia e a coragem. São todas diferentes, e escorrem letra a letra, como se pingassem, chegando por vezes a chover sobre o pedaço de papel branco que tenho à frente. Encharcando-o, interminavelmente. E agora tenho um oceano.
Contudo, as minhas palavras tanto molham como queimam. É com o fogo delas que eu incendeio o meu desejo e a minha paixão, e com a água delas que eu afogo a minha dor. Nasço e renasço com a escrita, e nela deparo-me com as minhas metamorfoses. E assim vou crescendo e ouso "amar o que os outros nem sequer são capazes de imaginar" (Eugénio de Andrade in Rosto Precário).
Termino e sinto-me aliviado. Tenho na minha folha branca as palavras que neste momento fazem mais sentido, as palavras íntimas do meu pensamento. É neste momento que me apercebo que não tenho todas as respostas do mundo, nem sequer uma só, mas sinto a plenitude de quem transpôs na folha pura e branca a própria alma. A minha alma.


(Outubro de 2006)

1 comment:

Daniel said...

WOW. Escreves tão bem! Adorei ler!